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14 Fev 2022

A alteração do regime da propriedade horizontal e o impacto nas transações imobiliárias

Carolina Cardoso Alves
Carolina Cardoso Alves
Associada Coordenadora
A alteração do regime da propriedade horizontal e o impacto nas transações imobiliárias
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Há muito que o regime da propriedade horizontal clamava por uma reforma, não só tendo em vista o esclarecimento de matérias mais controversas, mas também a sua adaptação às novas realidades. Esse desiderato é apenas parcialmente conseguido com a admissibilidade da utilização de meios telemáticos para facilitar as assembleias de condomínio, bem como com o reforço dos deveres do administrador de condomínio, nem sempre diligente. No entanto, a reforma não logra tornar mais estáveis e responsáveis as relações entre condóminos, vindo até potencialmente comprometer os investimentos que impliquem uma quotização extraordinária e contribuir para o adensar da complexidade formal das transações imobiliárias.

Pela sua importância, e por constituir a alteração mais significativa e com mais impacto no mercado transacional, afiguram-se merecedoras de um olhar mais atento as alterações em matéria da responsabilidade pelas despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício. Estas despesas são por vezes ocultas e revelam-se um encargo relevante para os adquirentes.

No essencial, as alterações introduzidas neste domínio pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, que altera o regime da propriedade horizontal são as seguintes:

(i) As despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações;

(ii) Para a celebração de contrato de alienação de fração da qual seja proprietário, o condómino alienante deverá requerer ao administrador de condomínio a emissão de declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à fração a alienar;

(iii) A responsabilidade por dívidas em caso de alienação de frações não se transmite para o adquirente, a não ser que o adquirente prescinda da declaração do administrador de condomínio referida no ponto anterior;

(iv) A assembleia de condóminos pode deliberar a utilização do fundo comum de reserva – criado para assegurar despesas de conservação do edifício – para outros fins, ainda que com a obrigação de os condóminos assegurarem a quotização extraordinária necessária à reposição do valor utilizado nos 12 meses subsequentes à deliberação;

(v) As despesas nas partes comuns afetas ao uso exclusivo de algum condómino são da sua responsabilidade, salvo se afetarem o estado de conservação ou o uso das demais partes comuns do edifício, caso em que esse condómino apenas as suporta na proporção que lhe caberia como se de outra qualquer despesa se tratasse.

No que aos pontos (i) a (iv) supra concerne, o legislador veio esclarecer que as obrigações de pagamento de quotizações extraordinárias e/ou ordinárias não têm natureza propter rem e, por conseguinte, são da responsabilidade de quem for proprietário no momento da deliberação que as aprove, pelo que não se transmitem para um posterior adquirente.

Apesar de, à primeira vista, esta parecer uma alteração que aporta uma maior proteção ao adquirente, antevêem-se ainda assim vários problemas e dificuldades práticas de aplicação.

Efetivamente, antes desta alteração ao regime da propriedade horizontal, o critério seguido era o da valorização do edifício. A doutrina e a jurisprudência maioritárias vinham considerando que a responsabilidade por quotizações extraordinárias se transmitia para o adquirente – porque essas quotizações potencialmente implicavam uma valorização do edifício e por conseguinte, ainda que indiretamente, uma valorização da fração. Por outro lado, vinham considerando que a responsabilidade por quotizações ordinárias não se transmitia para o adquirente – pois essas quotizações referiam-se a bens e serviços de que o anterior proprietário usufruiu e que não aproveitariam diretamente ao novo condómino. Esta alteração do regime vem clarificar que, para efeitos de transmissibilidade, umas e outras não merecem tratamento distinto e não se transmitem, a não ser que o adquirente prescinda da declaração do administrador de condomínio que deve instruir o contrato de alienação da fração.

Apesar desta alteração implicar uma maior segurança para quem adquire frações autónomas, a solução adotada aumenta o potencial de litígio dos condomínios e antecipa-se que venha a acarretar atrasos significativos na realização de obras emergentes ou importantes nos prédios (pois expectavelmente tenderão a não ser aprovadas por quem perspetivar alienar as suas frações a curto prazo).

Paralelamente, não deixará de ser útil monitorizar a tendência jurisprudencial relativamente às ações judiciais pendentes que impliquem o pagamento de quotizações em dívida, para perceber se os tribunais decidirão à luz do espírito atual do legislador ou em linha com a prática sedimentada de adoção do critério da valorização do prédio.

Quanto à declaração de encargos a emitir pelo administrador de condomínio, esta solução já vinha sendo aplicada na prática transacional e servia sobretudo para efeitos de informação e alocação de risco. A nova exigência notarial de se incluir uma referência a este respeito permitirá acautelar a posição de adquirentes menos informados e que poderiam assumir responsabilidades de forma inadvertida.

Ademais, a solução encontrada para as situações em que não seja emitida pela administração do condomínio qualquer declaração de encargos em tempo (no prazo de 10 dias) – o que se antecipa que venha a ocorrer com frequência –, é a de o interessado poder prescindir da declaração, o que implica a assunção das dívidas existentes, independentemente daquilo a que digam respeito.

Paradoxalmente, ao reconhecer o potencial de falha na emissão atempada das declarações agora merecedoras de tutela legal, o legislador consagra uma solução de recurso que, a pretexto da falta do formalismo, sacrifica sem mais a ratio do novo regime pois coloca o ónus desadequadamente no adquirente. Com efeito, o adquirente (sem contacto com o condomínio) poderá ver-se forçado a aceitar as responsabilidades por dívidas anteriores para não desistir da transação, não havendo uma solução intermédia que acautele convenientemente os seus interesses.

Em suma, a alteração do regime pretende conferir mais segurança e informação aos adquirentes, aumentando a transparência e permitindo a repercussão das responsabilidades por quotizações extraordinárias e/ou ordinárias em sede contratual. No entanto, a solução proposta irá manter o problema na maior parte dos casos por ineficiência dos condomínios, podendo prejudicar vários negócios. Nesta matéria o legislador devia ter seguido o critério que tem vindo a ser adotado pela doutrina e jurisprudência, em prol da transparência nas transações, da sustentabilidade dos prédios e até da preservação das relações de vizinhança.